21 de abr. de 2011




NOITE DE ABRIL

Sophia de Mello Breyner Andresen


Hoje, noite de Abril, sem lua,
A minha rua
É outra rua.

Talvez por ser mais que nenhuma escura
E bailar o vento leste
A noite de hoje veste
As coisas conhecidas de aventura.

Uma rua nova destruiu a rua do costume.
Como se sempre nela houvesse este perfume
De vento leste e Primavera,
A sombra dos muros espera

Alguém que ela conhece.
E às vezes, o silêncio estremece
Como se fosse a hora de passar alguém
Que só hoje não vem.



© Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética I
Caminho



15 de abr. de 2011



NAVIO NAUFRAGADO

Sophia de Mello Breyner Andresen


Vinha de um mundo
Sonoro, nítido e denso.
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso.

É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias,
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.

Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes.

E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem das sereias,
As sereias leves dos cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos de videntes.


©Sophia de Mello Breyner Andresen

In, O Dia do Mar - 1947, Lisboa, Edições Ática;
3ª ed. 1974 - Portugal


27 de mar. de 2011



MUDAR DE CASA

José Miguel Silva


É bom mudar de casa, de janela,
arrumar de outra maneira as ilusões,
tratar de coisas puras como tintas
e sofás, pôr ordem entre os livros
e a vida, simular a liberdade.
Parece-nos possível voltar a acreditar
na mão que nos estende um pé de salsa,
na pechincha da beleza, quando passa
no poente da razão.
Apetece cometer uma loucura,
comprar um telescópio, decorar
o canto nono dos Lusíadas,
subir umas escadas do avesso,
pensar que nunca mais teremos frio.


@José Miguel Silva
In, Ulisses já não mora aqui (2002),
Publicado pela &etc. - Portugal



18 de mar. de 2011



ENIGMA

António Salvado


Rememoro as ausências que não tive
quando o amor a elas obrigava:
foram muitas chegadas sem partida
De comboio avião ou de navio
quantas ‘stações e quantos cais de embarque
quantos aeroportos: um desfile
de bilhetes comprados e viagens.
Estranha comunhão: amor/ausência
irmanavam em tal mesma presença
como se a dor beirasse as alegrias.
Nem sei porquê razões de tantas fugas:
levo as mão ao meu rosto, conto rugas,
mas não recordo agora o que seria.


© António Salvado 
Nasceu em Castelo Branco a 20 de Fevereiro de 1936 - Portugal

In O Gosto de Escrever (1ª ed. 1997)
Poema incluído na Obra III, A Mar Arte, 1999


13 de mar. de 2011



MARÍTIMO


Manoel de Andrade


Quando a vida te exilou num cais de pedra,
teus vinte anos desabaram numa tarde do mundo…
e tu ficaste…
ficaste tão somente com o sal das tuas lágrimas,
preso à magia dos teus barcos de papel
e ao feitiço sonoro dos grandes caramujos
que te embalaram a infância com a sinfonia íntima dos mares.
Tuas lágrimas nunca molharam a tua face
mas transformaram tua alma numa laguna imensa.
Teu olhar… translúcido de pérola e verde
restou… sem a tatuagem dos oceanos.
Teu barco,
atrelado à fantasia,
soçobrou nas brechas das calçadas.
Teu canto, sem proa e sem rumo,
silenciou nos abismos do teu ser.

E tu… ficaste
impotente…
atado ao mistério do destino.
Sim, tu ficaste
tu… o grande marítimo
e teu coração afogou-se na vazante
e a vida te partiu em dois pedaços
e tiveste que sobreviver entre as lembranças indeléveis do teu sonho
e a súbita consciência de um dever a ser cumprido.

E tu… ficaste
na penumbra
na desfigurada penumbra das margens
sem a passagem do Gibraltar
sem cruzar o Helesponto
sem o farol na noite,  sem a terra à vista
sem a visão do iceberg solitário.
Tu ficaste sem a aurora  e  o crepúsculo perfeitos
sem o vôo do  albatroz e a dança das baleias
sem as monções, sem os alísios
sem o marulho e a calmaria.
Tu herdaste apenas  uma onda solitária
apagando sempre os teus passos na areia

Sim… tu ficaste!
algemado à pesada âncora do sonho
escamoteando os teus suspiros
e a tua inconfessável angústia.
De todos os navios,
de todas as tripulações,
restou apenas
a tua efígie de grumete
como um clandestino escondido no sacrário do teu ser,
a banhar-se agora nas marés e no orvalho da poesia…
refrigério
ressurreição
alaúde soluçante.

Já não ousas sonhar com a fascinante travessia dos fiordes
com a paisagem insular da Polinésia
com a visão das ilhas distantes
quais manchas cinzentas recortadas no azul
miragens impassíveis flutuando na linha do horizonte.
Já não sonhas com a marinha imensidão marinha
com a brisa aromática dos golfos
e as sonâmbulas gaivotas
e contudo… sentes,
pressentes que sempre haverá um norte,
haverá sempre um porto à tua espera
que haverá outros navios como o Granma
transportando oitenta e dois heróis e o sonho imenso de um povo
e eis que agora te ilumina o farol ofuscante desta Ilha
e eis que o fogo dessa pira acesa no Caribe
será a forja que acenderá  nova utopia
iluminando os caminhos de outras Sierras
e o rumo dos novos navegantes.

Com essa luz recriarás teu canto
anunciando a saga dos novos comandantes
e teu verso cuspirá na face indisfarçável dos verdugos
e beijará o rosto deslumbrante da esperança
e tu cantarás um sol atrás dessa penumbra
porque além dessa  insuportável sombra sobre a pátria
seremos sempre um povo navegando
porque haverá outros veleiros como o Mayflower
transportando os patriarcas de uma nova raça
navegando  na própria Via Láctea
navegando sob o signo do Cruzeiro
ao sul do Continente
no roteiro de um destino luminoso.

Tu ficaste...
e contudo… no âmago da alma,
impassível,
ontem, hoje, amanhã…sempre,
como um enigma.
restará o mar…
o mar que se espraia em tua vida
o mar que salga os teus pés e lava a tua alma
o mar onde teu sonho desde sempre singra os mares
navegando nas trirremes e nas galeras  do Mar Egeu
nos galeões de todas as bandeiras
no convés movimentado dos paquetes
na proa das chalupas na costa americana do Pacífico
nos grandes vapores oceânicos que riscaram os mares no século passado
na navegação de cabotagem
e no longo curso dos modernos navios mercantes.

Ah… o mar… 
o mar onde teu olhar navega em tudo que flutua
o mar onde um dia teu sonho buscou um capitão
o mar que ainda te espera
o mar…
sempre o mar


o mar de sempre   
o mar de todos os tempos
os cálidos mares primordiais
o mar sem navegantes
o mar da solidão perfeita
o berço da vida
o laboratório milenar das espécies 
o mar mitológico dos argonautas
o mar homérico nos mares adversos de Ulisses
o mar dos navegadores micênicos
o mar dos gregos e fenícios
talassa, talassa, o mar dos dez mil retirantes
talassa, talassa…
enfim… o mar, o mar… diz Xenofonte.

O Mare Nostrum…
o berço do Ocidente
o mar dos romanos e cartagineses
dos venezianos e genoveses
a rota marítima dos grandes navegantes
o mar da Coroa Espanhola
o mar Mediterrâneo de Filipe II.

O Mar do Norte
o mar cortado pela proa alta dos vikings
o mar dos navegadores noruegueses 
dos batedores marítimos do primeiro milênio
o mar cantado nos versos imortais de Heine.

O mar quinhentista, o mar da Escola de Sagres
os mares remotos sonhados por Dom Henrique, o Infante, o Navegador,
o mar das caravelas
o mar que descobriu o Novo Mundo 
que trouxe a espada de Cortez, de Pizarro e Alvarado
que trouxe o evangelho de Nóbrega e Anchieta
o mar que trouxe a sensibilidade de Maurício de Nassau.

Ah… o mar…
o mar em todos os mares
o mar dos grandes navegantes
o mar de Bartolomeu  Dias e Colombo
o mar de Cabral e de Fernão de Magalhães
o mar de James Cook e de Bering.
Os mares do sul e dos remotos navegantes polinésios
velejando pelas águas profundas do Grande Oceano
em busca de um berço de sol e do poente
o mar na origem do homem americano
na história misteriosa contada por uma balsa de juncos
o mar da expedição Kon Tiki

Ah… o mar…
o mar maculado pelo sangue das grandes batalhas
Salamina, Áccio, Lepanto…
o mar que afundou a Invencível Armada
o mar de Francis Drake
o Mar das Antilhas
o másculo mar dos piratas e bucaneiros
o domínio inquestionável de Henry Morgan
o mar do Almirante Nelson, o mar de Trafalgar
o mar da Coroa Inglesa
o mar nos mares sangrentos 
onde navegaram as fragatas e as canhoneiras da dominação ocidental.

Ah… o mar…
o mar abençoado pela bandeira da ciência
o mar na longa viagem do Beagle, o mar de Galápagos
o mar de Piccard
revelando os mistérios do abismo
o mar da Grande Travessia
da sonhada Passagem do Noroeste
o mar que uniu dois oceanos na  aventura gloriosa de Amundsen.

Ah… o mar… 
o mar que seduz o coração dos homens
o mar de Jacques Cousteau, o admirável Comandante
cruzando, a bordo do Calypso, as águas de todos os oceanos
para revelar ao mundo a beleza dos mares e da vida…

Ah… o mar…
o teu mar
o mar do leste
atlântico 
litorâneo
o teu mar brasileiro
o mar dos jangadeiros
o mar  dos canoeiros 
o doce mar cantado por Caymi.

O mar…
o mar que tu também cantas
o mar dos pescadores do sul
o teu mar de menino
o mar ainda dos remos e das velas
o mar dos espinhéis e das puçás
o mar das redes e das tarrafas
dos imensos cardumes de tainhas
caminhando como manchas inquietas sob as águas
o mar do vento-sul e do terral
o mar que assusta e que encanta.

Ah… o mar…
teu relicário
útero imensurável da vida
o ventre deslumbrante da aurora
o doce mar da tua infância
teu litoral de luz
o mar que inunda a tua poesia
o mar… sempre o mar
a  navegar palpitante em teu lirismo.

………………………………………………………………………..

Eis aí o inventário de tua alma
a herança de um sonho acalentado desde sempre.
Para ti, poeta
ou marujo ou companheiro
restou apenas um fragmento da tua mais legítima fantasia…
daqueles  barcos de papel que navegaram em tua infância. 
Restou uma imagem que somente a poesia te concede,
uma paisagem mágica que se impõe à revelia do tempo:

…numa praia do sul, salpicada de canoas, vai um barco sobre o mar…
é um veleiro deixando a baía  numa manhã de sol 
é o teu sonho navegando no rumo do horizonte…

……………………………………………………………………….

Mar
amado mar
suntuoso mausoléu aberto ao náufrago
tu me negaste a glória
o sal da vida
tu me afogaste
sobre um cais de pedra


Curitiba, janeiro de 65


@ Manoel de Andrade,
In, Cantares, Livro Editado por:
@2007, Escrituras Editora,
São Paulo, SP - Brasil



14 de fev. de 2011



CHAU NÚMERO TRES

Mario Benedetti


Te dejo con tu vida
tu trabajo
tu gente
con tus puestas de sol
y tus amaneceres.

Sembrando tu confianza
te dejo junto al mundo
derrotando imposibles
segura sin seguro.

Te dejo frente al mar
descifrándote sola
sin mi pregunta a ciegas
sin mi respuesta rota.

Te dejo sin mis dudas
pobres y malheridas
sin mis inmadureces
sin mi veteranía.

Pero tampoco creas
a pie juntillas todo
no creas nunca creas
este falso abandono.

Estaré donde menos
lo esperes
por ejemplo
en un árbol añoso
de oscuros cabeceos.

Estaré en un lejano
horizonte sin horas
en la huella del tacto
en tu sombra y mi sombra.

Estaré repartido
en cuatro o cinco pibes
de esos que vos mirás
y enseguida te siguen.

Y ojalá pueda estar
de tu sueño en la red
esperando tus ojos
y mirándote.


© Mario Benedetti
In, Poemas de otros (1973-1974)
 e In, El amor, las mujeres y la vida (1995)

Copyright © Mario Benedetti, 1995 
c/o Guillermo Schavelzon & Asoc. Agencia Literaria


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ADEUS NÚMERO 3

Deixo-te com tua vida
teu trabalho
tua gente
com teus pores-do-sol
e teus amanheceres.

Semeando tua confiança
deixo-te junto ao mundo
derrotando impossíveis
segura sem seguro.

Deixo-te frente ao mar
decifrando-te a sós
sem minha pergunta às cegas
sem minha resposta rota.

Deixo-te sem minhas dúvidas
pobres e mutiladas
sem minha imaturidade
sem minha veteranice.

Mas também não creias
de pés juntos em tudo
não creias nunca creias
neste falso abandono.

Estarei onde menos
esperares
por exemplo
numa árvore anciã
de obscuros cabeceios.

Estarei num distante
horizonte sem horas
na marca do tato
em tua sombra e minha sombra.

Estarei repartido
em quatro ou cinco meninos
desses para quem olhas
e em seguida te seguem.

E tomara possa estar
de teus sonhos na trama
esperando teus olhos
e te olhando.


Tradução de © Celina Portocarrero
Considero pessoalmente essa a melhor tradução

Mario Benedetti (Paso de los Toros, 14 de setembro de 1920 — Montevidéu, 17 de maio de 2009) foi um poeta, escritor e ensaísta uruguaio. Integrante da Geração de 45, a qual pertencem também Idea Vilariño e Juan Carlos Onetti, entre outros. Considerado um dos principais autores uruguaios, ele iniciou a carreira literária em 1949 e ficou famoso em 1956, ao publicar "Poemas de Oficina", uma de suas obras mais conhecidas. Benedetti escreveu mais de 80 livros de poesia, romances, contos e ensaios, assim como roteiros para cinema.


9 de fev. de 2011



(Livre Adaptação do texto
original de Ricardo Gondim)

TEMPO QUE FOGE!


Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver 
daqui para frente do que já vivi até agora. Sinto-me como aquele 
menino que ganhou uma bacia de jabuticabas. As primeiras, ele 
chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.

Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados. 
Não tolero gabolices. Inquieto-me com invejosos tentando destruir 
quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.

Já não tenho tempo para projetos megalomaníacos.
Não participarei de conferências que estabelecem prazos fixos 
para reverter a miséria do mundo. Não quero que me convidem 
para eventos de um fim de semana com a proposta de abalar o milênio.

Já não tenho tempo para reuniões intermináveis para discutir
estatutos, normas, procedimentos e regimentos internos.  
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, 
que apesar da idade cronológica, são imaturos.

Não quero ver os ponteiros do relógio avançando em reuniões
de 'confrontação', onde 'tiramos fatos a limpo'. 
Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo 
majestoso cargo de secretário geral do coral.
Lembrei-me agora de Mário de Andrade que afirmou: “as pessoas 
não debatem conteúdos, apenas os rótulos”. 
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a 
essência, minha alma tem pressa...
Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente 
humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta
com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não 
foge de sua mortalidade, defende a dignidade dos lizados, 
e deseja tão somente andar ao lado do que é justo.

Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade, desfrutar desse
amor absolutamente sem fraudes, nunca será perda de tempo.
O essencial faz a vida valer a pena.


O texto original foi publicado
In, “Creio, mas tenho Dúvidas”,
Editora Ultimato, MG - Brasil
© Ricardo Gondim
E o original pode ser lido no site:
http://www.ricardogondim.com.br/

Portanto, na esperança de que seja feita justiça, esse texto
não é da autoria de MÁRIO DE ANDRADE ou RUBEM ALVES
como circula na internet.


3 de fev. de 2011



33.

Nuno de Figueiredo


Porque agora o que mais nos inquieta
nesta funda ravina onde de rastos
o corpo declinamos suportamos onde o
canto dos pássaros se apresta ao exílio
capaz deste deserto porque agora

aquilo que nos faz voltar os olhos
e não ver além das cores o branco e
o silêncio além da música do sangue
pelos troncos e do frio nos ramos e 
nas sebes que ornam o tempo ano a ano

aquilo que agora nos acode é sermos
a voz única que grava nesta pedra
os sítios da memória os rituais
da espera porque agora reparamos e
nos frutos sentimos já os dentes com

a nova revolta chamada talvez resignação
porque temos é forçoso de aceitar que a
estação que vivemos agora e se eterniza
não é mais do que a única estação.


© Nuno de Figueiredo
In, A Única Estação
edições quasi
Portugal


27 de jan. de 2011



A CAIXA DAS CARTAS ANTIGAS

João Luís Barreto Guimarães


Ainda está por decidir a caixa 
onde somamos 
cartas de quem nos queria antes
do acordar aqui. Mas 
como ordenar essas linhas 
(mesmo que 
para as ler de vez)
sem ter que rever cada voz?
Resistindo à distracção de
ter que aceder à memória?
Sendo fiel ao momento sem
ser
desleal com o passado?
Usando apenas as mãos
sem usar dos sentimentos?
Revisitando os lugares
sem saudar as personagens?
chaves que deves fazer por
perder nas despedidas
se
no agudo vão de escadas que sobe ao teu coração
a caixa é uma teia
(ardilosamente montada)
pronta a reter a pressa de
um
voo mais desprevenido.


© João Luís Barreto Guimarães
In, Rés-do Chão
Editora Gótica, 2003
Portugal