13 de mar. de 2011



MARÍTIMO


Manoel de Andrade


Quando a vida te exilou num cais de pedra,
teus vinte anos desabaram numa tarde do mundo…
e tu ficaste…
ficaste tão somente com o sal das tuas lágrimas,
preso à magia dos teus barcos de papel
e ao feitiço sonoro dos grandes caramujos
que te embalaram a infância com a sinfonia íntima dos mares.
Tuas lágrimas nunca molharam a tua face
mas transformaram tua alma numa laguna imensa.
Teu olhar… translúcido de pérola e verde
restou… sem a tatuagem dos oceanos.
Teu barco,
atrelado à fantasia,
soçobrou nas brechas das calçadas.
Teu canto, sem proa e sem rumo,
silenciou nos abismos do teu ser.

E tu… ficaste
impotente…
atado ao mistério do destino.
Sim, tu ficaste
tu… o grande marítimo
e teu coração afogou-se na vazante
e a vida te partiu em dois pedaços
e tiveste que sobreviver entre as lembranças indeléveis do teu sonho
e a súbita consciência de um dever a ser cumprido.

E tu… ficaste
na penumbra
na desfigurada penumbra das margens
sem a passagem do Gibraltar
sem cruzar o Helesponto
sem o farol na noite,  sem a terra à vista
sem a visão do iceberg solitário.
Tu ficaste sem a aurora  e  o crepúsculo perfeitos
sem o vôo do  albatroz e a dança das baleias
sem as monções, sem os alísios
sem o marulho e a calmaria.
Tu herdaste apenas  uma onda solitária
apagando sempre os teus passos na areia

Sim… tu ficaste!
algemado à pesada âncora do sonho
escamoteando os teus suspiros
e a tua inconfessável angústia.
De todos os navios,
de todas as tripulações,
restou apenas
a tua efígie de grumete
como um clandestino escondido no sacrário do teu ser,
a banhar-se agora nas marés e no orvalho da poesia…
refrigério
ressurreição
alaúde soluçante.

Já não ousas sonhar com a fascinante travessia dos fiordes
com a paisagem insular da Polinésia
com a visão das ilhas distantes
quais manchas cinzentas recortadas no azul
miragens impassíveis flutuando na linha do horizonte.
Já não sonhas com a marinha imensidão marinha
com a brisa aromática dos golfos
e as sonâmbulas gaivotas
e contudo… sentes,
pressentes que sempre haverá um norte,
haverá sempre um porto à tua espera
que haverá outros navios como o Granma
transportando oitenta e dois heróis e o sonho imenso de um povo
e eis que agora te ilumina o farol ofuscante desta Ilha
e eis que o fogo dessa pira acesa no Caribe
será a forja que acenderá  nova utopia
iluminando os caminhos de outras Sierras
e o rumo dos novos navegantes.

Com essa luz recriarás teu canto
anunciando a saga dos novos comandantes
e teu verso cuspirá na face indisfarçável dos verdugos
e beijará o rosto deslumbrante da esperança
e tu cantarás um sol atrás dessa penumbra
porque além dessa  insuportável sombra sobre a pátria
seremos sempre um povo navegando
porque haverá outros veleiros como o Mayflower
transportando os patriarcas de uma nova raça
navegando  na própria Via Láctea
navegando sob o signo do Cruzeiro
ao sul do Continente
no roteiro de um destino luminoso.

Tu ficaste...
e contudo… no âmago da alma,
impassível,
ontem, hoje, amanhã…sempre,
como um enigma.
restará o mar…
o mar que se espraia em tua vida
o mar que salga os teus pés e lava a tua alma
o mar onde teu sonho desde sempre singra os mares
navegando nas trirremes e nas galeras  do Mar Egeu
nos galeões de todas as bandeiras
no convés movimentado dos paquetes
na proa das chalupas na costa americana do Pacífico
nos grandes vapores oceânicos que riscaram os mares no século passado
na navegação de cabotagem
e no longo curso dos modernos navios mercantes.

Ah… o mar… 
o mar onde teu olhar navega em tudo que flutua
o mar onde um dia teu sonho buscou um capitão
o mar que ainda te espera
o mar…
sempre o mar


o mar de sempre   
o mar de todos os tempos
os cálidos mares primordiais
o mar sem navegantes
o mar da solidão perfeita
o berço da vida
o laboratório milenar das espécies 
o mar mitológico dos argonautas
o mar homérico nos mares adversos de Ulisses
o mar dos navegadores micênicos
o mar dos gregos e fenícios
talassa, talassa, o mar dos dez mil retirantes
talassa, talassa…
enfim… o mar, o mar… diz Xenofonte.

O Mare Nostrum…
o berço do Ocidente
o mar dos romanos e cartagineses
dos venezianos e genoveses
a rota marítima dos grandes navegantes
o mar da Coroa Espanhola
o mar Mediterrâneo de Filipe II.

O Mar do Norte
o mar cortado pela proa alta dos vikings
o mar dos navegadores noruegueses 
dos batedores marítimos do primeiro milênio
o mar cantado nos versos imortais de Heine.

O mar quinhentista, o mar da Escola de Sagres
os mares remotos sonhados por Dom Henrique, o Infante, o Navegador,
o mar das caravelas
o mar que descobriu o Novo Mundo 
que trouxe a espada de Cortez, de Pizarro e Alvarado
que trouxe o evangelho de Nóbrega e Anchieta
o mar que trouxe a sensibilidade de Maurício de Nassau.

Ah… o mar…
o mar em todos os mares
o mar dos grandes navegantes
o mar de Bartolomeu  Dias e Colombo
o mar de Cabral e de Fernão de Magalhães
o mar de James Cook e de Bering.
Os mares do sul e dos remotos navegantes polinésios
velejando pelas águas profundas do Grande Oceano
em busca de um berço de sol e do poente
o mar na origem do homem americano
na história misteriosa contada por uma balsa de juncos
o mar da expedição Kon Tiki

Ah… o mar…
o mar maculado pelo sangue das grandes batalhas
Salamina, Áccio, Lepanto…
o mar que afundou a Invencível Armada
o mar de Francis Drake
o Mar das Antilhas
o másculo mar dos piratas e bucaneiros
o domínio inquestionável de Henry Morgan
o mar do Almirante Nelson, o mar de Trafalgar
o mar da Coroa Inglesa
o mar nos mares sangrentos 
onde navegaram as fragatas e as canhoneiras da dominação ocidental.

Ah… o mar…
o mar abençoado pela bandeira da ciência
o mar na longa viagem do Beagle, o mar de Galápagos
o mar de Piccard
revelando os mistérios do abismo
o mar da Grande Travessia
da sonhada Passagem do Noroeste
o mar que uniu dois oceanos na  aventura gloriosa de Amundsen.

Ah… o mar… 
o mar que seduz o coração dos homens
o mar de Jacques Cousteau, o admirável Comandante
cruzando, a bordo do Calypso, as águas de todos os oceanos
para revelar ao mundo a beleza dos mares e da vida…

Ah… o mar…
o teu mar
o mar do leste
atlântico 
litorâneo
o teu mar brasileiro
o mar dos jangadeiros
o mar  dos canoeiros 
o doce mar cantado por Caymi.

O mar…
o mar que tu também cantas
o mar dos pescadores do sul
o teu mar de menino
o mar ainda dos remos e das velas
o mar dos espinhéis e das puçás
o mar das redes e das tarrafas
dos imensos cardumes de tainhas
caminhando como manchas inquietas sob as águas
o mar do vento-sul e do terral
o mar que assusta e que encanta.

Ah… o mar…
teu relicário
útero imensurável da vida
o ventre deslumbrante da aurora
o doce mar da tua infância
teu litoral de luz
o mar que inunda a tua poesia
o mar… sempre o mar
a  navegar palpitante em teu lirismo.

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Eis aí o inventário de tua alma
a herança de um sonho acalentado desde sempre.
Para ti, poeta
ou marujo ou companheiro
restou apenas um fragmento da tua mais legítima fantasia…
daqueles  barcos de papel que navegaram em tua infância. 
Restou uma imagem que somente a poesia te concede,
uma paisagem mágica que se impõe à revelia do tempo:

…numa praia do sul, salpicada de canoas, vai um barco sobre o mar…
é um veleiro deixando a baía  numa manhã de sol 
é o teu sonho navegando no rumo do horizonte…

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Mar
amado mar
suntuoso mausoléu aberto ao náufrago
tu me negaste a glória
o sal da vida
tu me afogaste
sobre um cais de pedra


Curitiba, janeiro de 65


@ Manoel de Andrade,
In, Cantares, Livro Editado por:
@2007, Escrituras Editora,
São Paulo, SP - Brasil



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