23 de jan. de 2011



CÂNTICOS
( I e IV de XXVI ) 

Cecília Meireles


Dize: 
O vento do meu espírito 
Soprou sobre a vida. 
E tudo que era efêmero 
Se desfez. 
E ficaste só tu, que és eterno... 


Cântico 


Não queiras ter Pátria. 
Não dividas a Terra. 
Não dividas o Céu. 
Não arranques pedaços ao mar. 
Não queiras ter. 
Nasce bem alto, 
Que as coisas todas serão tuas. 
Que alcançarás todos os horizontes. 
Que o teu olhar, estando em toda parte 
Te ponha em tudo, * 
Como deus. 

*verso-base: Estarás em tudo


II 

Não sejas o de hoje. 
Não suspires por ontens... 
Não queiras ser o de amanhã. 
Faze-te sem limites no tempo. 
Vê a tua vida em todas as origens. 
Em todas as existências. 
Em todas as mortes. 
E sabe que serás assim para sempre. 
Não queiras marcar a tua passagem. 
Ela prossegue: 
É a passagem que se continua. 
É a tua eternidade... 
É a eternidade. 
És tu. 


III 

Não digas onde acaba o dia. 
Onde começa a noite. 
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra, 
Onde termina o céu. 
Não digas até onde és tu. 
Não digas até onde é Deus. 
Não fales palavras vãs. 
Desfaze-te da vaidade triste de falar. 
Pensa, completamente silencioso. 
Até a glória de ficar silencioso, 
Sem pensar. 


IV 
Adormece teu corpo com a música da vida. 
Encanta-te. 
Esquece-te. 
Tem por volúpia a dispersão. 
Não queiras ser tu. 
Quere ser a alma infinita de tudo. 
Troca o teu curto sonho humano 
Pelo sonho imortal. 
O único. 
Vence a miséria de ter medo. 
Troca-te pelo Desconhecido. 
Não vês, então, que ele é maior? 
Não vês que ele não tem fim? 
Não vês que ele és tu mesmo? 
Tu que andas esquecido de ti? *

*verso-base: Tu que te esqueceste de ti?


©Cecília Meireles
(Rio de Janeiro, 07.11.1901 - Rio de Janeiro, 09.11.1964)
Foi uma poetisa, pintora, professora e jornalista brasileira.
In, Antologia Poética, Editora Record, 1963
Rio de Janeiro, Brasil

Trecho extraído: 

CECÍLIA MEIRELES 
Cânticos

PROJETO DE LEITURA 
Coordenação: © Maria José Nóbrega 
Elaboração: © Roseli Novak, Luísa Nóbrega
© EDITORA MODERNA
Contigo criamos leitores


COMENTÁRIOS SOBRE A OBRA

Cânticos reúne vinte e seis poemas de Cecília Meireles, todos eles de caráter intimista e introspectivo, alguns com mote vinculado à eternidade e à autodescoberta. Exploram a repetição de palavras e o paralelismo sintático, recursos que conferem aos poemas suave musicalidade. 
A edição, ao permitir ao leitor observar os manuscritos da autora, oferece a rara oportunidade de compartilhar alguns de seus processos de produção poética, além de apreciar os delicados desenhos que vai deixando distraidamente em algumas páginas. 


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