CÂNTICOS
( I e IV de XXVI )
Cecília Meireles
Dize:
O vento do meu espírito
Soprou sobre a vida.
E tudo que era efêmero
Se desfez.
E ficaste só tu, que és eterno...
Cântico
I
Não queiras ter Pátria.
Não dividas a Terra.
Não dividas o Céu.
Não arranques pedaços ao mar.
Não queiras ter.
Nasce bem alto,
Que as coisas todas serão tuas.
Que alcançarás todos os horizontes.
Que o teu olhar, estando em toda parte
Te ponha em tudo, *
Como deus.
*verso-base: Estarás em tudo
II
Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens...
Não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabe que serás assim para sempre.
Não queiras marcar a tua passagem.
Ela prossegue:
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade...
É a eternidade.
És tu.
III
Não digas onde acaba o dia.
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu.
Não digas até onde és tu.
Não digas até onde é Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa, completamente silencioso.
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.
IV
Adormece teu corpo com a música da vida.
Encanta-te.
Esquece-te.
Tem por volúpia a dispersão.
Não queiras ser tu.
Quere ser a alma infinita de tudo.
Troca o teu curto sonho humano
Pelo sonho imortal.
O único.
Vence a miséria de ter medo.
Troca-te pelo Desconhecido.
Não vês, então, que ele é maior?
Não vês que ele não tem fim?
Não vês que ele és tu mesmo?
Tu que andas esquecido de ti? *
*verso-base: Tu que te esqueceste de ti?
©Cecília Meireles
(Rio de Janeiro, 07.11.1901 - Rio de Janeiro, 09.11.1964)
Foi uma poetisa, pintora, professora e jornalista brasileira.
In, Antologia Poética, Editora Record, 1963
Rio de Janeiro, Brasil
Trecho extraído:
CECÍLIA MEIRELES
Cânticos
PROJETO DE LEITURA
Coordenação: © Maria José Nóbrega
Elaboração: © Roseli Novak, Luísa Nóbrega
© EDITORA MODERNA
Contigo criamos leitores
COMENTÁRIOS SOBRE A OBRA
Cânticos reúne vinte e seis poemas de Cecília Meireles, todos eles de caráter intimista e introspectivo, alguns com mote vinculado à eternidade e à autodescoberta. Exploram a repetição de palavras e o paralelismo sintático, recursos que conferem aos poemas suave musicalidade.
A edição, ao permitir ao leitor observar os manuscritos da autora, oferece a rara oportunidade de compartilhar alguns de seus processos de produção poética, além de apreciar os delicados desenhos que vai deixando distraidamente em algumas páginas.
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