27 de jan. de 2011



A CAIXA DAS CARTAS ANTIGAS

João Luís Barreto Guimarães


Ainda está por decidir a caixa 
onde somamos 
cartas de quem nos queria antes
do acordar aqui. Mas 
como ordenar essas linhas 
(mesmo que 
para as ler de vez)
sem ter que rever cada voz?
Resistindo à distracção de
ter que aceder à memória?
Sendo fiel ao momento sem
ser
desleal com o passado?
Usando apenas as mãos
sem usar dos sentimentos?
Revisitando os lugares
sem saudar as personagens?
chaves que deves fazer por
perder nas despedidas
se
no agudo vão de escadas que sobe ao teu coração
a caixa é uma teia
(ardilosamente montada)
pronta a reter a pressa de
um
voo mais desprevenido.


© João Luís Barreto Guimarães
In, Rés-do Chão
Editora Gótica, 2003
Portugal



23 de jan. de 2011



CÂNTICOS
( I e IV de XXVI ) 

Cecília Meireles


Dize: 
O vento do meu espírito 
Soprou sobre a vida. 
E tudo que era efêmero 
Se desfez. 
E ficaste só tu, que és eterno... 


Cântico 


Não queiras ter Pátria. 
Não dividas a Terra. 
Não dividas o Céu. 
Não arranques pedaços ao mar. 
Não queiras ter. 
Nasce bem alto, 
Que as coisas todas serão tuas. 
Que alcançarás todos os horizontes. 
Que o teu olhar, estando em toda parte 
Te ponha em tudo, * 
Como deus. 

*verso-base: Estarás em tudo


II 

Não sejas o de hoje. 
Não suspires por ontens... 
Não queiras ser o de amanhã. 
Faze-te sem limites no tempo. 
Vê a tua vida em todas as origens. 
Em todas as existências. 
Em todas as mortes. 
E sabe que serás assim para sempre. 
Não queiras marcar a tua passagem. 
Ela prossegue: 
É a passagem que se continua. 
É a tua eternidade... 
É a eternidade. 
És tu. 


III 

Não digas onde acaba o dia. 
Onde começa a noite. 
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra, 
Onde termina o céu. 
Não digas até onde és tu. 
Não digas até onde é Deus. 
Não fales palavras vãs. 
Desfaze-te da vaidade triste de falar. 
Pensa, completamente silencioso. 
Até a glória de ficar silencioso, 
Sem pensar. 


IV 
Adormece teu corpo com a música da vida. 
Encanta-te. 
Esquece-te. 
Tem por volúpia a dispersão. 
Não queiras ser tu. 
Quere ser a alma infinita de tudo. 
Troca o teu curto sonho humano 
Pelo sonho imortal. 
O único. 
Vence a miséria de ter medo. 
Troca-te pelo Desconhecido. 
Não vês, então, que ele é maior? 
Não vês que ele não tem fim? 
Não vês que ele és tu mesmo? 
Tu que andas esquecido de ti? *

*verso-base: Tu que te esqueceste de ti?


©Cecília Meireles
(Rio de Janeiro, 07.11.1901 - Rio de Janeiro, 09.11.1964)
Foi uma poetisa, pintora, professora e jornalista brasileira.
In, Antologia Poética, Editora Record, 1963
Rio de Janeiro, Brasil

Trecho extraído: 

CECÍLIA MEIRELES 
Cânticos

PROJETO DE LEITURA 
Coordenação: © Maria José Nóbrega 
Elaboração: © Roseli Novak, Luísa Nóbrega
© EDITORA MODERNA
Contigo criamos leitores


COMENTÁRIOS SOBRE A OBRA

Cânticos reúne vinte e seis poemas de Cecília Meireles, todos eles de caráter intimista e introspectivo, alguns com mote vinculado à eternidade e à autodescoberta. Exploram a repetição de palavras e o paralelismo sintático, recursos que conferem aos poemas suave musicalidade. 
A edição, ao permitir ao leitor observar os manuscritos da autora, oferece a rara oportunidade de compartilhar alguns de seus processos de produção poética, além de apreciar os delicados desenhos que vai deixando distraidamente em algumas páginas. 


18 de jan. de 2011



A ALMA DOS DIFERENTES

Artur da Távola


Ah, o diferente, esse ser especial!
Diferente não é quem pretenda ser.
Esse é um imitador do que
ainda não foi imitado,
nunca um ser diferente.

Diferente é quem foi dotado
de alguns mais e de alguns menos em hora,
momento e lugar errados para os outros.
Que riem de inveja de não serem assim.
E de medo de não aguentar,
caso um dia venham a ser.
O diferente é um ser sempre
mais próximo da perfeição.
O diferente nunca é um chato.
Mas é sempre confundido
por pessoas menos sensíveis e avisadas.
Supondo encontrar um chato
onde está um diferente,
talentos são rechaçados;
vitórias, adiadas;
esperanças, mortas.
Um diferente medroso, este sim,
acaba transformando-se num chato.
Chato é um diferente que não vingou.

Os diferentes muito inteligentes
percebem porque os outros
não os entendem.

Os diferentes raivosos
acabam tendo razão sozinhos,
contra o mundo inteiro.

Diferente que se preza entende
o porquê de quem o agride.

Se o diferente se mediocrizar,
mergulhará no complexo de inferioridade.

O diferente paga sempre o preço de estar
- mesmo sem querer –
alterando algo, ameaçando rebanhos,
carneiros e pastores.
O diferente suporta e digere a ira do irremediavelmente igual,
a inveja do comum, o ódio do mediano.

O verdadeiro diferente
sabe que nunca tem razão,
mas que está sempre certo.

O diferente começa a sofrer cedo,
já no primário, onde os demais, de mãos dadas,
e até mesmo alguns adultos,
por omissão, se unem para transformar
o que é peculiaridade e potencial
em aleijão e caricatura.
O que é percepção aguçada em:
“Puxa, fulano, como você é complicado”.
O que é o embrião de um estilo próprio em:
“Você não está vendo como todo mundo faz?”

O diferente carrega desde cedo apelidos
e marcações os quais acaba incorporando.
Só os diferentes mais fortes do que o mundo
se transformaram (e se transformam)
nos seus grandes modificadores.

Diferente é o que vê mais longe do que o consenso.
O que se nte antes mesmo dos demais
começarem a perceber.
Diferente é o que se emociona
enquanto todos em torno,
agridem e gargalham.
É o que engorda mais um pouco;
chora onde outros xingam;
estuda onde outros burram.
Quer onde outros cansam.
Espera de onde já não vem.
Sonha entre realistas.
Concretiza entre sonhadores.
Fala de leite em reunião de bêbados.
Cria onde o hábito rotiniza.
Sofre onde os outros ganham.

Diferente é o que fica doendo
onde a alegria impera.
Aceita empregos que ninguém supõe.
Perde horas em coisas que
só ele sabe importantes.
Engorda onde não deve.
Diz sempre na hora de calar.
Cala nas horas erradas.
Não desiste de lutar pela harmonia.
Fala de amor no meio da guerra.
Deixa o adversário fazer o gol,
porque gosta mais de jogar do que de ganh ar.

Ele aprendeu a superar riso,
deboche, escárnio,
e consciência dolorosa de
que a média é má porque é igual.

Os diferentes aí estão:
enfermos, paralíticos, machucados, engordados,
magros demais, inteligentes em excesso,
bons demais para aquele cargo,
excepcionais, narigudos, barrigudos,
joelhudos, de pé grande, de roupas erradas,
cheios de espinhas, de mumunha,
de malícia ou de baba.

Aí estão, doendo e doendo,
mas procurando ser,
conseguindo ser,
sendo muito mais.

A alma dos diferentes é feita de uma luz além.
Sua estrela tem moradas deslumbrantes
que eles guardam para os pouco capazes
de os sentir e entender.
Nessas morada s estão
tesouros da ternura humana.
De que só os diferentes são capazes.

Não mexa com o amor de um diferente.
A menos que você seja suficientemente forte
para suportá-lo depois.

©Artur da Távola

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Por:
©Deborah Rocha

Artur da Távola

O jornalista, escritor e ex-senador Artur da Távola era homem de vocação renascentista: atuou com brilho em áreas distintas como literatura, política, rádio e jornal – foi colunista de O DIA desde 1987.
Artur da Távola era o pseudonimo do carioca Paulo Alberto Moretzsohn Monteiro de Barros, nascido em 3 de janeiro de 1936. Formou-se em Direito em 1959, mas seu envolvimento com o movimento estudantil o levou, já no ano seguinte, a ser eleito deputado constituinte pelo estado da Guanabara.
Foi reeleito em 1962 e ingressou no PTB. Cassado pelo regime militar, exilou-se na Bolívia e Chile entre 1964 e 1968. Ao retornar, adotou o pseudonimo de Artur da Távola e começou a escrever sobre televisão no jornal ‘Última Hora’.
Ao longo da vida, publicou 23 livros e comandou programas de jornalismo e música clássica no rádio e na TV . Atualmente, dirigia a rádio Roquette Pinto, que passou por reformulação sob seu comando. “Era um craque em tudo o que se metia: rádio, TV, música, jornalismo, política… Ele fez uma revolução na Roquette Pinto. Agora abriu-se um buraco”, lamentou o jornalista Sérgio Cabral.
Em 1988, foi um dos fundadores do PSDB e se elegeu deputado federal constituinte. Em 1994, foi eleito ao Senado. Pensador independente, deixou o Senado em 2003, mas se manteve referência respeitada. “Artur era muita coisa numa pessoa só. Ele foi um exemplo de uma vida sem rasuras”, elogiou o presidente do PSDB no Senado, Arthur Virgílio.
“É um dos grandes homens públicos de seu tempo, referência para minha geração”, afirmou o governador de Minas Gerais, Aécio Neves. “Nos deixou um dos melhores homens públicos do Brasil. Perdi um amigo íntimo e sábio”, lamentou o prefeito de São Paulo, José Serra, que foi com Távola para o exílio no Chile.
Faleceu em 9 de maio de 2008.


16 de jan. de 2011



AQUÁRIO

Manoel de Andrade


Silente e impassível
o mar
navega sua beleza
em  preguiçosas caudas
e barbatanas velozes,
ilumina-se em translúcidas medusas
e na cromática simetria das escamas.

Refrata a luz e a vida
no remanso submerso das águas,
em seus relicários de pérolas
e no  balé  itinerante dos cardumes.

Mar, ó mar…
escondeste teus íntimos mistérios
na pressão insuportável dos abismos
nessas paisagens indevassáveis da vida
onde transitam  feições primordiais jamais iluminadas.

Abres, contudo, as pálpebras da aurora
e o sol emerge do teu ventre  qual fornalha ardente
e na superfície das águas
ilumina tua face absoluta
nesta horizontal extensão do azul
nesta planície sulcada de quilhas e naufrágios
onde se agitam as caudas gigantescas das jubartes
e as asas serenas do albatroz.

Teus brancos litorais abraçam a Terra
desde sempre marejados pelo teu íntimo palpitar.
Tuas marés redesenham os cinturões de areia
e delimitam teu espaço inconquistável.
Os manguezais invadidos retratam teus domínios.
Contra teu furor levantam-se falésias
fiordes verticais e punhais de granito.
Edificas tua linha de recifes,
teus castelos de corais,
cultivas teus jardins de algas e sargaços
onde mandíbulas poderosas,
venenos e descargas fulminantes,
ditam teu código submerso.

Mar, ó mar
transparente  beleza de flores e de frutos
território enigmático de vidas e silêncio
abismo onde flutuam os sobreviventes
sudário de todos os náufragos.

Mar azul
chamo-te água absoluta
porque absoluta é a tua sedução
a tua irresistível espuma
a mobilidade do teu ritmo
tua incessante sinfonia
teu eloqüente silêncio.

E contudo…
diante do etérico oceano…
diante dessas deslumbrantes ilhas estelares…
tu és apenas um úmido ponto no infinito
um aquoso respingo
minúsculo aquário
um minuto ondulante na eternidade
há bilhões de anos se espraiando
nessa gota salgada suspensa no universo.
                                 

Curitiba, março de 2004


@ Manoel de Andrade,
In, Cantares, Livro Editado por:
@2007, Escrituras Editora,
São Paulo, SP - Brasil


12 de jan. de 2011



ESCREVER SILENCIOSO


Muitas vezes já me peguei fazendo a mesma pergunta, deveria eu voltar a escrever, como fazia no passado naqueles caderninhos de capa preta, pelos quais tinha um amor todo especial? Me lembro de sempre ter um à mão na hora certa, sempre escrito com um lápis, numa letra pequena e por muitas vezes em uma grafia nada elegante.


Escrever, sempre me pareceu um ato mágico, e sempre coloquei as coisas dessa forma, sei expressar um sentimento com cores e formas, mas palavras, elas me assustam desde que sou criança. Fui e sou um péssimo aluno na língua portuguesa, gramática, verbos, crases... Talvez reflexo da infância, quando criança, apenas falava um dialeto antigo, dialeto esse que já foi carregado por séculos pelos confins do mundo até finalmente chegar aqui com meus avós e pais, assim minhas primeiras palavras foram de certa forma, muito antigas. Depois veio a tal “aula dominical” na língua alemã e por fim a escola, entre amiguinhos, dialeto, ensino no início em alemão, e somente depois veio o português. Então, sem dúvida, ela marcou menos.
Sempre falta a palavra certa no momento que é preciso, e hoje ainda, ela vem, mas vem no dialeto, vem no inglês, vem no alemão, mas no português, ela me falta... lembro depois quando já não a preciso mais.


Mas, apesar de tudo isso, escrever sempre convida. E isso sei que é de alguma forma genético, quando criança eu visitava muito minha avó materna, e ela possuía um livro muito grande, na verdade, apesar de criança, nunca tinha visto livro de tal tamanho e peso, ele exercia um fascínio todo especial. Lá dentro haviam centenas de anotações, poemas, receitas, ilustrações de pinturas que ainda iria fazer um dia, letras e melodias de canções antigas, páginas e páginas de nomes da árvore genealógica, e lembro bem de ver coisas escritas ainda em gótico, numa grafia linda. A qual eu só entendia a impressa, mas a escrita era sempre um segredo a parte!


Depois minha mãe, apesar da pouca instrução oficial, pois os imigrantes, muitos foram alocados em regiões tão inóspitas, mesmo aqui no sul do Brasil, onde a questão primeira era a sobrevivência e depois, talvez, algum estudo muito básico. Ela ainda tem um dom para a palavra escrita, poesia, ah poesia, ali ela desliga do mundo que a rodeia, esquece dor ou fome e escreve sem parar. 


Eu tive a felicidade de realizar um sonho que ela sempre alimentou, publicar ao menos um livro das centenas de poesias e textos que já escreveu.


E ao pensar em tudo isso, volto a pergunta inicial, será que algum lápis ainda espera?

Mirante.



CÂNTICOS
( II e III de XXVI ) 

Cecília Meireles

II

Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens …
Não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabe que serás assim para sempre.
Não queiras marcar a tua passagem.
Ela prossegue:
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade …
É a eternidade.
És tu.

III

Não digas onde acaba o dia.
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu.
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde é Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa, completamente silencioso.
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.


© Cecília Meireles
(Rio de Janeiro, 07.11.1901 - Rio de Janeiro, 09.11.1964)
Foi uma poetisa, pintora, professora e jornalista brasileira.
In, Antologia Poética, Editora Record, 1963
Rio de Janeiro, Brasil


10 de jan. de 2011



ALEGRÍA DE LA TRISTEZA

© Mario Benedetti


En las viejas telarañas de la tristeza
suelen caer las moscas de sartre
pero nunca las avispas de aristófanes

uno puede entristecerse
por muchas razones y sinrazones
y la mayoría de las veces sin motivo aparente
sólo porque el corazón se achica un poco
no por cobardía sino por piedad

la tristeza puede hacerse presente
con palabras claves o silencios porfiados
de todas maneras va a llegar
y hay que aprontarse a recibirla

la tristeza sobreviene a veces
ante el hambre millonaria del mundo
o frente al pozo de alma de los desalmados

el dolor por el dolor ajeno
es una constancia de estar vivo

después de todo / pese a todo
hay una alegría extraña / desbloqueada
en saber que aún podemos estar tristes.


© Mario Benedetti
(Uruguaio - 14.09.1920 − 17.05.2009)
In, La vida ese paréntesis
Ediciones Alfaguara, S.A., Madrid

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A Alegria na Tristeza


O título desse texto na verdade não é meu, e sim de um poema do uruguaio Mario Benedetti. No original, chama-se "Alegría de la tristeza" e está no livro "La vida ese paréntesis" que, até onde sei, permanece inédito no Brasil.

O poema diz que a gente pode entristecer-se por vários motivos ou por nenhum motivo aparente, a tristeza pode ser por nós mesmos ou pelas dores do mundo, pode advir de uma palavra ou de um gesto, mas que ela sempre aparece e devemos nos aprontar para recebê-la, porque existe uma alegria inesperada na tristeza, que vem do fato de ainda conseguirmos senti-la.

Pode parecer confuso mas é um alento. Olhe para o lado: estamos vivendo numa era em que pessoas matam em briga de trânsito, matam por um boné, matam para se divertir. Além disso, as pessoas estão sem dinheiro. Quem tem emprego, segura. Quem não tem, procura. Os que possuem um amor desconfiam até da própria sombra, já que há muita oferta de sexo no mercado. E a gente corre pra caramba, é escravo do relógio, não consegue mais ficar deitado numa rede, lendo um livro, ouvindo música. Há tanta coisa pra fazer que resta pouco tempo pra sentir.

Por isso, qualquer sentimento é bem-vindo, mesmo que não seja uma euforia, um gozo, um entusiasmo, mesmo que seja uma melancolia. Sentir é um verbo que se conjuga para dentro, ao contrário do fazer, que é conjugado pra fora.

Sentir alimenta, sentir ensina, sentir aquieta. Fazer é muito barulhento.

Sentir é um retiro, fazer é uma festa. O sentir não pode ser escutado, apenas auscultado. Sentir e fazer, ambos são necessários, mas só o fazer rende grana, contatos, diplomas, convites, aquisições. Até parece que sentir não serve para subir na vida.

Uma pessoa triste é evitada. Não cabe no mundo da propaganda dos cremes dentais, dos pagodes, dos carnavais. Tristeza parece praga, lepra, doença contagiosa, um estacionamento proibido. Ok, tristeza não faz realmente bem pra saúde, mas a introspecção é um recuo providencial, pois é quando silenciamos que melhor conversamos com nossos botões. E dessa conversa sai luz, lições, sinais, e a tristeza acaba saindo também, dando espaço para uma alegria nova e revitalizada.
Triste é não sentir nada.


© Martha Medeiros
(Porto Alegre, 20.08.1961)
Jornalista e escritora brasileira.


9 de jan. de 2011



O MAR

Manoel de Andrade


Conheço teu agitado marulho
tua voz de barítono
conheço tua zangada pronúncia
tuas lanças arrojadas pelos braços da tormenta
conheço tua suave dança
na onda calma e inumerável
na  crista transformada em súbita canção de espumas
conheço-te na beleza da baía amanhecida
na hora melancólica do crepúsculo
e no teu dorso enluarado.

Me deste a paisagem das águas litorâneas
e a espuma se estendendo sobre a areia
me mostraste a nudez e o encanto das praias solitárias  
a preamar e a vazante
e o teu perfil de mastros e gaivotas
me deste a magia do horizonte
uma vela solta ao vento
e um barco de papel para os meus sonhos
mas nunca me mostraste
a extensão azul dos teus domínios
e nem um indício sequer dos teus enigmas.

Marinheiro sem mar e sem destino
nunca pude navegar tuas distâncias.
Deste banquete
me deste apenas o paladar salgado dos meus versos
minha sílaba de sal
e a tua própria essência salpicada entre meus dedos
molécula elementar
unânime cristal
para que na minha dieta imprescindível
eu possa provar teu sabor todos os dias.

Curitiba, Abril de 2004.


@ Manoel de Andrade,
In, Cantares, Livro Editado por:
@2007, Escrituras Editora,
São Paulo, SP - Brasil


8 de jan. de 2011



FOLHA

David Mourão-Ferreira

Era uma folha pousada
no cotovelo do vento:
e pairava, deslumbrada,
entre morte e movimento.

Era uma folha: lembrava,
de tão frágil, o momento
em que a vida me ficava
escrava do teu juramento.

Era uma folha: mais nada.
Antes fosse esquecimento!


© David de Jesus Mourão-Ferreira
In "Os quatro cantos do tempo"
Obra Poética, 5ª ed., Editorial Presença, 2006
Escritor e Poeta, 1927 - 1996
Portugal